C. S. Lewis, um dos mais proeminentes escritores cristãos do século XX, criou As Crônicas de Nárnia como um veículo literário extraordinário para explorar verdades espirituais profundas. Sua abordagem única transformou a literatura infantil em um terreno fértil para reflexões teológicas complexas, permitindo que conceitos cristãos abstratos se tornassem acessíveis e cativantes para leitores de todas as idades.
A gênese criativa de Nárnia é tão fascinante quanto a própria obra. Lewis relata que tudo começou com uma imagem persistente em sua mente: “Um fauno carregando um guarda-chuva e pacotes em um bosque nevado” – uma visão que o acompanhou desde sua juventude até amadurecer como escritor. Esta origem aparentemente casual revela a natureza orgânica da criação literária de Lewis, onde imagens poéticas germinam lentamente até se transformarem em narrativas ricas de significado.
Crucial é compreender a abordagem de Lewis em relação à alegoria. Diferentemente de outros escritores que deliberadamente constroem analogias diretas, Lewis preferia uma abordagem mais orgânica. Em sua própria palavras: “Eu não disse a mim mesmo ‘Vamos representar Jesus como Ele realmente é em nosso mundo como um Leão em Nárnia'”. Em vez disso, ele propôs um exercício imaginativo mais profundo: “Vamos supor que exista uma terra como Nárnia e que o Filho de Deus, como Ele se tornou um Homem em nosso mundo, se torne um Leão lá, e então vamos ver o que acontece”.
Esta distinção é fundamental. Lewis não estava criando uma alegoria literal da narrativa bíblica, mas explorando as verdades espirituais através de um mundo completamente imaginário, onde princípios cristãos pudessem ser experimentados de maneira nova e surpreendente.
Análise livro por livro
1. O Sobrinho do Mago
No primeiro volume, Lewis realiza uma recriação poética do relato bíblico da criação. A descrição da gênese de Nárnia ecoa diretamente os primeiros versículos do Gênesis, capturando a essência do momento criativo através de imagens transcendentais.
A passagem “Na escuridão, algo estava acontecendo por fim. Uma voz começara a cantar. […] As estrelas cantaram em coro e as águas se moveram ao som daquela música” não é apenas descritiva, mas uma meditação profunda sobre a criação divina. Lewis evoca o conceito hebraico de shalom – paz e harmonia primordial – que existia antes da entrada do pecado no mundo.
A personagem Jadis, que posteriormente se tornará a Feiticeira Branca, é introduzida como uma representação simbólica da tentação. Sua entrada no mundo através de um objeto aparentemente inofensivo, violando uma proibição simples, replica narrativamente o drama do Jardim do Éden. Lewis sugere que a tentação possui um poder desproporcionalmente grande, capaz de desencadear consequências que transcendem gerações inteiras.
2. O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa
Neste volume, Lewis alcança o ápice da alegoria cristã através do sacrifício de Aslan, uma representação profundamente elaborada de Jesus Cristo. O conceito da “Magia Profunda” torna-se um veículo teológico sofisticado para explicar o princípio da expiação substitutiva.
A passagem “Se a Feiticeira conhecesse o verdadeiro significado da Magia Profunda, saberia que, quando uma vítima voluntária que não cometeu traição se oferece em lugar de um traidor, a Mesa se quebra e a própria Morte começa a trabalhar ao contrário” condensa uma complexa doutrina teológica em uma linguagem acessível e poética.
A ressurreição de Aslan é descrita com uma linguagem que mistura o místico e o transcendental, ecoando diretamente a ressurreição de Cristo. “Houve um clarão repentino de fogo (mas não produziu calor) […] o corpo começou a mudar […] e antes que percebessem o que estava acontecendo, viram-se diante de um Aslan que ria para elas, embora continuasse sendo um leão” – uma descrição que captura tanto o aspecto misterioso quanto a alegria transformadora da ressurreição.
Os personagens principais carregam significados simbólicos profundos. Edmundo representa o pecador arrependido, enquanto a Feiticeira Branca personifica Satanás, tentando-o com doces – uma metáfora utilizada por Lewis que podemos entender como o fruto proibido. E, dessa forma, a jornada de Edmundo no livro torna-se uma narrativa de redenção e graça divina, paralela a de todos os que aceitam a Cristo por meio de Sua obra substitutória.
3. O Príncipe Caspian
“O Príncipe Caspian” explora a complexa relação entre fé e dúvida, revelando como a crença permanece um desafio mesmo para os mais devotos cristãos. Lewis demonstra que ver não é sempre crer, e crer frequentemente requer ir além do visível. O diálogo entre Lúcia e Pedro ilustra perfeitamente essa tensão: “Eu acho que ele quer que nós o sigamos.” “Você acha que ele estava lá?” perguntou Pedro. “Não sei,” disse Lúcia. “Mas acho que ele estava nos chamando para segui-lo.”
A questão da dúvida e do ceticismo também contamina os narnianos, que faz tempo que não viram a Aslan, e alguns deles até mesmo apelam para a Feiticeira Branca como esperança em meio a guerra secular que tem com os Telmarinos.
Este livro é o que mais se parece com a experiência da Igreja após o Novo Testamento. Cristo, o Leão de Judá, já veio e ressuscitou, mas mesmo assim ainda não estamos no fim da história. Ainda não moramos no País de Aslan. Estamos no já e no ainda não. O que fazer e a quem recorrer apenas alguns cristãos parecem ter visões de Cristo? O que fazer quando há ameaças existenciais que podem acabar com a Igreja (ou com a grande preocupação de nossos tempos, o fim do Ocidente)?
A resposta é a mesma de sempre. É manter a fé em Cristo. A obra que Ele fez no passado garante o nosso presente e o nosso futuro.
A narrativa convida os leitores a refletirem sobre a natureza da fé – uma confiança que persiste mesmo quando o caminho parece incerto e a presença divina parece distante. Aslan representa a figura divina que desafia os personagens a confiarem além do compreensível, a moverem-se pela fé e não pela visão.
4. A Viagem do Peregrino da Alvorada
Neste volume, Lewis aprofunda a dimensão metafísica de sua alegoria cristã. A revelação de Aslan a Lúcia torna-se um momento teologicamente denso, onde a divindade se revela como algo maior que qualquer nome ou compreensão terrena. “Mas lá eu tenho outro nome. Você deve aprender a me conhecer por aquele nome. Foi por isso que você veio a Nárnia, para que, conhecendo-me um pouco aqui, possa me conhecer melhor lá.”
Mas bem antes deste momento nas praias da borda do mundo de Nárnia, vemos a transformação espiritual de Eustáquio. Um rapaz chato, cético e arrogante, que cai na tentação da busca por tesouros. Aquela sede por riqueza e superioridade o transformou em um dragão. A sua vontade de ser maior que todos e de ter mais que todos o transformou em um monstro. E ao contemplar quem ele tinha se tornado, ele se desespera. O seu reflexo o assusta e ele não consegue pensar em como sair daquilo. Como voltar a ser um menino? Como voltar a ser humano? E como voltar pra casa quando você sabe que tudo o que as pessoas verão quando olharem para você será um dragão?
Foi quando Aslam lhe apareceu que ele percebeu que tinha que buscar alguém que tivesse a autoridade, a honra e o poder para tirar toda a monstruosidade dele.
A jornada torna-se uma metáfora para a busca espiritual humana – uma peregrinação onde o conhecimento divino só é alcançado através de uma abertura progressiva, uma disposição para transcender os limites do conhecido.
5. A Cadeira de Prata
A narrativa mergulha nos desafios da obediência espiritual, utilizando as provações de Giu e Eustáquio como veículo para explorar a jornada de fé cristã. A transformação de Eustáquio torna-se particularmente significativa: “O garoto de antes não teria reconhecido a nobreza de sua própria ação. Eustáquio havia mudado.”
Nesta história, por causa das obras da Feiticeira Verde, o príncipe Rílian, Eustáquio, Giu e Poçaflito se encontram presos em cavernas e no meio de uma ilusão de que tudo o que existe é o mundo de debaixo. Todo o resto…Nárnia, as praias, até a existência do próprio Sol são tudo ilusão. Aonde se apegar quando o mundo quer te convencer de que não existe nada além do que vemos aqui?
Lewis demonstra que a transformação espiritual não é instantânea e que cada provação serve como um cinzel divino, esculpindo o caráter através de desafios espirituais e escolhas existenciais.
6. O Cavalo e o Seu Menino
Neste volume, Lewis explora profundamente os temas da providência divina, identidade pessoal e o chamado individual dentro do plano maior de Deus. A história de Aravis, Shasta, e os cavalos falantes Hwin e Bri transcende uma simples narrativa de fuga e aventura, transformando-se em uma sofisticada alegoria sobre predestinação e propósito divino.
A jornada dos protagonistas revela-se como um elaborado tecido de eventos aparentemente aleatórios que, na verdade, são meticulosamente orquestrados por uma inteligência superior – uma clara metáfora da providência divina. Cada desvio, cada encontro, cada desafio surge não como coincidência, mas como parte de um plano maior que ultrapassa a compreensão imediata dos personagens.
Shasta, descobrindo sua verdadeira identidade como príncipe da Arquelândia, representa a transformação cristã da identidade. Assim como os cristãos são chamados a reconhecer sua verdadeira natureza como filhos de Deus, Shasta descobre que sua vida tem um propósito muito além do que ele inicialmente imaginava. A revelação de sua origem real não é um mero artifício narrativo, mas uma profunda alegoria sobre a identidade espiritual – o chamado para algo maior que transcende as circunstâncias imediatas.
A intervenção de Aslan ao longo da narrativa é particularmente significativa. Ele não age como uma figura distante, mas como um guia presente, muitas vezes imperceptível no momento, mas claramente reconhecível em retrospecto. “Eu era o leão que te empurrou para o precipício”, revela Aslan a Shasta, demonstrando como o que parece ser um momento de perigo pode ser, na verdade, um instrumento divino de direcionamento.
A cena onde Aslan revela suas múltiplas intervenções na vida de Shasta torna-se um momento teologicamente rico. Cada ferida, cada medo, cada desafio aparentemente aleatório é revelado como parte de um plano maior. Esta passagem ecoa profundamente a compreensão cristã de que Deus trabalha “todas as coisas para o bem daqueles que o amam” (Romanos 8:28), transformando até os momentos mais difíceis em instrumentos de crescimento e propósito.
Os cavalos também carregam significados alegóricos importantes. Bri, inicialmente orgulhoso e cheio de si, representa o cristão que precisa ser humilhado para compreender verdadeiramente a graça. Sua jornada de transformação ilustra o processo de santificação – o caminho de reconhecer as próprias limitações e submeter-se a uma orientação superior.
A fuga de Aravis e Shasta da Calormânia para a Arquelândia serve como uma poderosa metáfora da libertação espiritual. Eles estão escapando não apenas de um reino físico, mas de um sistema opressivo que os limitava – uma alegoria transparente da libertação da escravidão do pecado para a liberdade em Cristo.
Neste livro, a providência não é um conceito abstrato, mas uma realidade vivida – um convite para ver além do aparentemente aleatório, reconhecendo um desígnio maior que nos conduz, mesmo quando não conseguimos compreendê-lo completamente.
7. A Última Batalha
No derradeiro volume, Lewis aproxima-se mais explicitamente do livro do Apocalipse. “O tempo de viver e crescer havia acabado. A colheita estava madura. E, naquele instante, todos os que estavam de pé na grama foram arrebatados” – uma descrição que evoca diretamente as narrativas bíblicas do julgamento final.
Quando um macaco e um asno surgem para fingir que Aslan havia voltado a Nárnia e começam a escravizar a população, surge o desafio de fazer as pessoas abrirem os olhos para aquele engano e para a volta do verdadeiro Aslan. Este episódio, que nos lembra dos alertas do Apocalipse sobre o Anticristo, terminam culminando do fim de Nárnia e da passagem de vários de nossos personagens queridos ao País de Aslan, que existe além de Nárnia.
A transformação final transcende a linguagem, como sugere a passagem: “E, à medida que Ele falava, já não parecia mais com um leão; mas as coisas que começaram a acontecer depois disso foram tão grandiosas e belas que não consigo descrevê-las.” Aqui, Lewis sugere que a realidade divina última está além da compreensão humana, um mistério que só pode ser experimentado quando chegarmos lá.
Conclusão
As Crônicas de Nárnia revelam-se muito mais que histórias infantis. São uma sofisticada meditação teológica, onde Lewis usa a fantasia como um prisma para refração dos princípios cristãos. Através de Aslan, ele explora redenção, graça, fé, a natureza do mal e a promessa de uma transformação final.
Estes são apenas alguns dos episódios e paralelos teológicos que podem ser encontrados na obra.
A genialidade de Lewis reside em sua capacidade de tornar conceitos teológicos complexos acessíveis através de uma narrativa envolvente, permitindo que leitores de todas as idades possam experimentar, ainda que metaforicamente, as profundidades da experiência espiritual cristã.
Livros recomendados para se aprofundar
- Conversando com C. S. Lewis (Alister McGrath)
- O outro nome de Aslam (Vinicius Miranda/Gabrielle Greggersen)
- Viva como um narniano (Joy Rigney)