Anéis de Poder e o poder do mal de corromper o bem

A série “Anéis de Poder”, baseada no universo de J.R.R. Tolkien, oferece uma exploração profunda e nuançada do tema da corrupção do poder. Longe de apresentar uma visão simplista da luta entre o bem e o mal, a série nos brinda com um retrato complexo de como o mal pode se infiltrar e corromper até mesmo as intenções mais nobres.

O enredo se passa no final da Segunda Era, milênios antes os eventos de “O Hobbit” e “O Senhor dos Anéis“, que ganharam adaptações cinematográficas.

A sutil manipulação de Sauron

AVISO: SPOILERS ATÉ O TERCEIRO EPISÓDIO DA SEGUNDA TEMPORADA.

Sauron, interpretado com maestria por Charlie Vickers, não se apresenta como uma figura abertamente maligna. Ao contrário, ele utiliza de astúcia e manipulação para se infiltrar entre os povos da Terra-média. Na primeira temporada, ele consegue enganar até mesmo Galadriel (Morfydd Clark), líder dos exércitos do Norte e uma das mais sábias entre os elfos, ao se disfarçar de Halbrand, o suposto legítimo rei das Terras do Sul. Na segunda temporada, sua tática se torna ainda mais refinada:

“A sombra se esconde por um tempo e logo volta a aparecer,” diz Sauron no prólogo da temporada.

Esta frase resume perfeitamente sua estratégia. Sauron se adapta, muda de forma e abordagem, sempre buscando atingir os pontos fracos de cada personagem.

Como Tolkien escreveu em uma de suas cartas:

“O Inimigo, ou aqueles que se tornaram como ele, é impelido por um motivo cego: a mera vontade de dominar, tornando as coisas e as criaturas seus escravos.”

O próprio Sauron havia se recolhido depois do fim da Primeira Era, onde havia sido derrotado com o seu senhor Morgoth. Mas não se apresentou para ser julgado pelos Valar (o equivalente aos anjos do mundo de Tolkien), teve seu orgulho ferido pela derrota, e aprendeu a se apresentar não como mal, mas como algo desejável para os povos da Terra-média. Como C.S. Lewis escreveu em “Cristianismo puro e simples“:

“O orgulho leva a todos os outros vícios: é o estado de espírito completamente anti-Deus.”

E Sauron, como explica Tolkien em “O Silmarillion“, sempre teve uma inclinação para o controle e ordem, acreditando que somente pelo domínio absoluto (e só o dele), a Terra-Média poderia prosperar de acordo com sua visão:

“Em sua origem, ele pertencia à ordem dos Maiar de Aulë, e permaneceu poderoso nas artes daquele povo; mas ele desejava ter um reino próprio e dominar outras vontades por meio de força e controle, pois era este o desejo de seu mestre, Morgoth.”

E em uma das cartas (a carta 131), Tolkien descreve Sauron como um ser que inicialmente justificava suas ações como sendo para o “bem maior,” acreditando que ele poderia melhorar o mundo se fosse seu governante absoluto:

“Ele (Sauron) ficou em parte nobre (de uma maneira perversa), pois desejava o controle de toda a Terra Média para ordenar todas as coisas conforme sua própria vontade, para o bem (como ele o via) do mundo.”

A corrupção das boas intenções

Um dos aspectos mais interessantes da narrativa é como personagens com intenções genuinamente boas podem ser levados à ruína. Vemos isso em diversos personagens:

  1. Celebrimbor (Charles Edwards): Busca reconhecimento e deseja sair da sombra de seu mestre, Fëanor. E por isso, ajuda a Halbrand e depois acredita em sua história de ser um enviado dos Valar, porque isso faria do Celebrimbor no ‘Senhor dos Anéis’.
  2. Gil-Galad (Benjamin Walker): Teme o fim da era dos elfos e vê nos Anéis de Poder uma chance de restaurar a glória de seu reino. Ao mesmo tempo, sua arrogância o impede de ouvir os avisos de Elrond sobre o perigo daquilo.
  3. Disa (Sophia Nomvete): Acredita que a salvação para os problemas enfrentados pelos anões nas cavernas está em se abrir para o mundo exterior, confiando nas promessas de Annatar (Sauron), e intervindo para que seu esposo, Durin, cure as feridas com o pai para cumprir esse propósito.

Cada um desses personagens age movido por um desejo genuíno de fazer o bem, de proteger seu povo ou de alcançar grandes feitos. No entanto, é justamente nessa nobreza de propósito que reside sua vulnerabilidade à corrupção. Pois são nas sombras do bem que o Sauron age.

C. S. Lewis, em “Cartas de um diabo a seu aprendiz“, oferece uma perspectiva interessante sobre como o mal pode se aproveitar de boas intenções:

“De fato, quanto melhor o homem for, mais tentadoras serão nossas sutilezas. Uma coisa simples é fazer um grosseiro pecar. Mas seduzir um homem bom, capturar sua última fortaleza, é uma vitória digna de ser celebrada no Inferno.”

A ilusão da perfeição

A série também nos mostra como a busca pela perfeição pode ser um caminho perigoso. Círdan (Maxim Baldry), inicialmente cético, sucumbe à tentação ao ver os anéis élficos:

“A perfeição só existe em Valinor”, insistia ele sobre as habilidades da Terra-Média. Mas quando ele é obrigado por um ‘acidente’ a ver os anéis élficos, ele é conquistado por sua beleza, e começa a acreditar em perfeição em seu mundo caído.

Esta cena ilustra como até mesmo os mais sábios podem ser seduzidos pela promessa de um poder que parece oferecer soluções perfeitas para problemas complexos. Quase como as ideologias políticas que prometem de forma populista resolver todos os problemas num toque de mágica, como alerta o filósofo político Thomas Sowell, ou como as tentativas de se criar um Reino dos céus na terra, que de utopias, geralmente se transformam em distopias horrendas, como podemos ver em vários casos na história.

A natureza do mal segundo Tolkien

Uma citação de Tolkien resume bem a natureza do mal como retratada na série:

“O mal não pode criar nada de novo, só pode corromper e arruinar o que as forças do bem inventaram ou fizeram.”

Esta visão do mal como uma força corruptora, incapaz de criar, mas hábil em distorcer e arruinar, é central para a compreensão da narrativa. Vemos isso na forma como Sauron tenta corromper os elfos através de Celebrimbor, os anões através de Durin IV (Owain Arthur) e Disa, e os humanos através de vários personagens ao longo da série.

A vitória sobre o mal só é possível através da renúncia ao falso bem que ele oferece, reconhecendo que suas promessas são apenas aparentes, ou no melhor dos casos, versões menores do verdadeiro bem, que é o que deve ser buscado. Esta é talvez a lição mais importante que “Anéis de Poder” nos oferece. A verdadeira força não está em ceder à tentação do poder, por mais nobre que pareça o propósito, mas em reconhecer seus perigos e ter a coragem de rejeitá-lo.

“Anéis de Poder”, através de seu elenco talentoso e narrativa complexa, não é apenas uma história de fantasia, mas um alerta sobre os perigos sutis do poder e da corrupção, tão relevantes em nosso mundo quanto na Terra-média de Tolkien.

A série se encontra disponível no Prime Video.

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