Como C. S. Lewis usa a ficção científica para explorar os limites da ciência

C. S. Lewis, renomado por suas obras de ficção e reflexões filosóficas, aborda de maneira incisiva o conceito de cientificismo em sua Trilogia Cósmica, composta pelos livros “Além do planeta silencioso” (1938), “Perelandra” (1943) e “Aquela fortaleza medonha” (1945). Através dessa série, Lewis tece uma crítica contundente a uma visão de mundo que eleva a ciência a um status absoluto, negligenciando outras dimensões cruciais da experiência humana.

Antes de mergulharmos na análise de como Lewis aborda o cientificismo em sua trilogia, é fundamental compreendermos o que esse termo significa. O cientificismo é a crença de que o método científico é a única fonte válida de conhecimento e que todos os problemas podem ser resolvidos exclusivamente por meio da ciência. Embora a ciência seja inegavelmente uma ferramenta poderosa para a compreensão do mundo físico, o cientificismo pode levar a um perigoso reducionismo, onde a complexidade da experiência humana é limitada apenas a fenômenos mensuráveis e quantificáveis.

A Trilogia Cósmica de Lewis serve como um veículo para explorar os perigos dessa visão de mundo. Vamos examinar cada livro da série, suas sinopses e como eles se relacionam com a crítica ao cientificismo:

“Além do planeta silencioso” (1938)

O primeiro livro da trilogia nos apresenta ao Dr. Elwin Ransom, um filólogo inspirado em J. R. R. Tolkien, amigo de Lewis e escritor de “O Senhor dos Anéis”. Ele é sequestrado e levado ao planeta Malacandra (Marte). Lá, ele descobre uma sociedade alienígena complexa, composta por três raças inteligentes que vivem em harmonia com o cosmos e entre si.

O antagonista, Weston, um cientista obcecado pela expansão da humanidade para outros planetas, encarna o cientificismo em sua forma mais crua. Ele vê Malacandra apenas como um recurso a ser explorado, desconsiderando completamente o valor intrínseco de cada vida consciente e a riqueza espiritual da vida que lá existe.

Lewis utiliza o contraste entre a visão de Ransom e a de Weston para ilustrar os perigos do cientificismo. Enquanto Ransom se maravilha com a diversidade e a espiritualidade dos habitantes de Malacandra, Weston os vê como obstáculos a serem removidos em nome do “progresso” científico. Um exemplo marcante disso é quando Weston declara: “Raças inferiores existem para ser exploradas em prol da expansão da raça superior. Isso é a lei da natureza.” Esta fala demonstra como o cientificismo pode ser usado para justificar atos moralmente repugnantes, como foi possível ver no desenvolvimento de diversas tecnologias, como as armas químicas.

“Perelandra” (1943)

No segundo livro, Ransom é enviado ao planeta Perelandra (Vênus), um mundo paradisíaco recém-criado. Lá, ele encontra a Dama Verde, que é como a Eva deste novo Éden, e deve protegê-la das tentações do mal, personificado novamente por Weston, agora possuído por uma força demoníaca.

Nesta obra, Lewis aprofunda sua crítica ao cientificismo, mostrando como ele pode se tornar uma forma de idolatria. Weston, em sua busca obsessiva pelo que ele chama de “Força da Vida”, rejeita toda noção de moralidade e espiritualidade em favor de uma visão puramente materialista da existência.

Um exemplo poderoso da crítica de Lewis ao cientificismo neste livro é quando Weston tenta convencer a Dama Verde a desobedecer à única proibição imposta pelo criador de Perelandra. Ele argumenta: “O conhecimento é poder. O homem tem o direito de buscar todo conhecimento possível, sem restrições arbitrárias.” Esta fala ilustra como o cientificismo pode levar à rejeição de limites éticos em nome do progresso científico.

“Aquela fortaleza silenciosa” (1945)

O livro final da trilogia traz a ação de volta à Terra, focando em um jovem acadêmico chamado Mark Studdock. Mark se envolve com o N.I.C.E. (National Institute of Co-ordinated Experiments), uma organização que busca controlar a sociedade através da ciência e da tecnologia.

Nesta obra, Lewis apresenta sua crítica mais direta e devastadora ao cientificismo. O N.I.C.E. representa o ápice de uma visão de mundo que busca reduzir todos os aspectos da vida humana a processos puramente materiais e controláveis. A organização planeja criar uma sociedade “científica” perfeita, mesmo que isso signifique a eliminação de grande parte da humanidade.

Um exemplo marcante da crítica de Lewis neste livro é quando um dos líderes do N.I.C.E. explica a Mark: “O homem é apenas o produto de forças sociais e biológicas. Uma vez que compreendamos completamente essas forças, poderemos criar o ser humano perfeito.” Esta declaração ilustra como o cientificismo pode levar a uma visão desumanizadora e potencialmente totalitária da sociedade.

Conclusão

Ao longo da trilogia, Lewis usa a ficção científica como um meio para explorar temas filosóficos e teológicos profundos. Sua crítica ao cientificismo não é um ataque à ciência em si, mas um alerta contra a elevação da ciência a um status quase religioso, capaz de responder a todas as questões da existência humana.

Lewis não está sozinho em sua crítica ao cientificismo. Outros autores também abordaram esse tema de maneiras diversas. Por exemplo, Aldous Huxley, em “Admirável Mundo Novo“, retrata uma sociedade distópica onde a ciência e a tecnologia são usadas para controlar todos os aspectos da vida humana, ecoando as preocupações de Lewis. E também a série antológica examina as implicações éticas e sociais da tecnologia avançada e da ciência em vários episódios, muitas vezes criticando uma visão excessivamente otimista e reducionista do progresso científico.

Além da Trilogia Cósmica, Lewis abordou o tema do cientificismo em outras obras. Em “A Abolição do Homem“, ele argumenta que a tentativa de reduzir todos os valores a explicações pseudo-científicas leva a uma “abolição” da própria humanidade. E em “Milagres“, Lewis desafia a visão de que o universo é um sistema fechado, governado apenas por leis naturais, argumentando que isso exclui a possibilidade de intervenção divina e limita nossa compreensão da realidade.

A crítica de Lewis ao cientificismo permanece relevante hoje, em um mundo cada vez mais dominado pela ciência e pela tecnologia. Sua obra nos lembra que, embora a ciência seja uma ferramenta poderosa para compreender o mundo físico, ela não pode fornecer respostas para todas as questões da existência humana. A espiritualidade, a moralidade e a estética são dimensões fundamentais da experiência humana que não podem ser reduzidas a meras explicações científicas.

Em conclusão, a Trilogia Cósmica de C.S. Lewis oferece uma crítica profunda e multifacetada ao cientificismo. Através de suas narrativas envolventes e personagens complexos, Lewis nos convida a considerar os perigos de uma visão de mundo que eleva a ciência acima de todas as outras formas de conhecimento e experiência. Sua obra nos desafia a buscar uma compreensão mais holística da realidade, uma que integre o conhecimento científico com insights espirituais, morais e estéticos. Num mundo onde o avanço tecnológico muitas vezes parece ultrapassar nossa capacidade de reflexão ética, as advertências de Lewis contra os excessos do cientificismo continuam a ressoar com uma urgência surpreendente.

2 comentários em “Como C. S. Lewis usa a ficção científica para explorar os limites da ciência”

  1. Edson Rodolfo

    Bom texto. Li recentemente a obra e fiquei admirado com a profundidade das reflexões de Lewis. É sutil em muitos pontos levando o leitor a se envolver com as questões éticas e religiosas de maneira madura, lógica e inteligente, além de se questionar em suas próprias convicções até aquele momento.

    1. Exatamente. Essa Trilogia é bem menos falada que as Crônicas, mas tem muita profundidade, principalmente em temáticas, que são tão relevantes hoje como quando foram publicados os livros.

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