O feminismo de Greta Gerwig se encaixará em Nárnia?

Em 2023, Greta Gerwig alcançou um marco histórico ao se tornar a primeira diretora mulher a ultrapassar US$ 1 bilhão em bilheteria com um filme solo, “Barbie”. Sua ascensão de cineasta independente a diretora de blockbusters não significou, contudo, um abandono de suas preocupações centrais com a experiência feminina e suas complexidades.

Ao ser escolhida para dirigir a nova adaptação de “As Crônicas de Nárnia” para a Netflix, podemos entender melhor como ela pode abordar a obra de C. S. Lewis baseado no seu retrospecto no cinema. 

O feminismo de Gerwig se destaca por adotar uma abordagem mais humanista e que não foge das fragilidades da experiência feminina, distanciando-se do feminismo ideológico comum em Hollywood, muitas vezes cheio de estereótipos sobre ‘mulheres fortes’. E, ainda que ela não abandone suas convicções e deixe isso claro nos diálogos e na construção da narrativa, ela parece ter um cuidado maior com um bom roteiro, como aconteceu com diversas franquias gigantes nos últimos tempos, desde a Marvel até Star Wars. Veremos como isso aconteceu em cada um dos seus filmes anteriores.

Lady Bird

No seu filme de estreia como diretora solo, “Lady Bird” (2017), Gerwig explora a complexa relação entre mãe e filha, desafiando narrativas tradicionais sobre a independência feminina como uma independência total da família. Em vez de retratar uma história de libertação das amarras familiares, o filme sugere que o amadurecimento está mais ligado a abraçar nossas conexões, mesmo as relações quebradas com a mãe, do que rejeitá-las.

Em uma entrevista à NPR sobre “Lady Bird”, Gerwig revelou sua intenção de evitar estereótipos: “Eu não queria que o personagem da mãe se encaixasse perfeitamente em uma categoria de anjo ou monstro, que é geralmente o que acontece com personagens maternos nos filmes… Vejo a maioria das mães fazendo o melhor que podem, cometendo erros e tentando seguir em frente.” 

Essa complexidade tanto à personagem da mãe como da filha mostra o seu cuidado em não elevar a figura da mulher a ponto de perder em vista o lado humano dos personagens, uma crítica comum ao feminismo dos grandes blockbusters de Hollywood. Talvez por isso o filme atraiu indicações ao Óscar, incluindo o de melhor filme, ao mesmo tempo que não provocou reações fortes nas redes sociais. Entretanto, este filme não teve o mesmo impacto nas redes sociais que seus filmes seguintes e chegou em um tempo em que as guerras culturais ainda não estavam no seu ápice, e isso deve ser levado em conta.

Adoráveis Mulheres

Com “Adoráveis Mulheres” (2019), Gerwig demonstrou sua capacidade de adaptar material clássico, mas dessa vez, tomando decisões mais polêmicas para adaptar o livro ao público contemporâneo que levaram a debates sobre as mudanças sobre o final da história. 

Um dos momentos mais interessantes do filme nos ajuda a entender a complexidade com a qual Gerwig trata a figura feminina. Em certo ponto, Jo March declara: “As mulheres têm mentes, e têm almas, assim como corações. E têm ambição, e têm talento, assim como apenas beleza. Estou tão cansada de pessoas dizendo que o amor é tudo para o que uma mulher serve. Estou tão cansada disso! Mas estou tão sozinha.”

A personagem da Jo é o que poderia se entender como uma mulher que escolhe a independência e os sonhos em vez do casamento. Esse dilema tem um contraponto em suas irmãs, Amy e Meg, que questionam se aquele é realmente o melhor caminho para todas elas, principalmente quando a Jo tenta convencer a Meg de que o casamento é algo do que ela deveria fugir, ouvindo como resposta: “Só porque os seus sonhos são diferentes dos meus, não significa que não sejam importantes.”

Vemos, na personagem, que a independência não é vista como uma ‘libertação’ total por qual todas as mulheres devem passar e que não possui consequências. Jo March escolhe por sua independência, mas se sente só. E suas irmãs escolhem outros caminhos, incluindo o casamento tradicional mas o filme não as trata como menos mulheres por causa disso.

Barbie

Já com “Barbie”, Gerwig falou mais abertamente sobre o tema do feminismo, sendo um dos temas centrais do filme não apenas de forma implícita, mas também explícita. O filme da famosa boneca aborda questões de identidade feminina, patriarcado e autodescoberta de forma acessível, mas recebeu críticas por deixar o feminismo mais estereotipado e, por vezes, mais infantilizado. 

Segunda a diretora explicou em entrevista à BBC Radio 4, sua intenção era criar algo mais profundo do que apenas entretenimento, explorando questões de metáfora e significado em um mundo aparentemente perfeito mas essencialmente vazio. E realmente, o mundo ‘perfeito’ da Barbie passa esta impessão ao mesmo tempo em que serve de alegoria para as relações de gênero moderna.

Mas a forma como o filme ‘leciona’ sobre o tema, e resolve o conflito entre Barbie e Ken ao deixar o famoso casal separado e com as outras Barbies deixando os Kens ‘lutarem por seus direitos’, gerou uma situação onde parece haver mais um sentimento de vingança do que de reconciliação. E acende o debate a como a diretora pode tratar o mesmo tema em Nárnia, uma saga que já enfrentou criticismo de feministas principalmente em relação ao final da Susana.

Expectativas para Nárnia

Quanto à sua próxima empreitada com “As Crônicas de Nárnia”, Gerwig afirmar demonstrar profundo respeito pelo material original: “Os livros de Nárnia de C. S. Lewis são algo que eu amo desde que era criança. Diria que os meus dois livros de infância foram Mulherzinhas e Nárnia.”

Esta declaração sugere que ela poderá trazer para Nárnia a mesma sensibilidade que trouxe para “Adoráveis Mulheres” – respeito pelo original combinado com uma visão contemporânea. O que tem deixado alguns fãs de Nárnia preocupados pela ligação dos livros com temas mais religiosos e com um autor socialmente mais conservador. 

A Netflix já afirmou que as adaptações serão “profundamente enraizadas na fé”, respondendo às preocupações dos fãs sobre possíveis desvios da mensagem cristã original. E Gerwig parece estar consciente do desafio, dizendo estar “interessada em abraçar o paradoxo dos mundos que Lewis criou, porque isso é o que faz deles tão interessantes.”

Considerando o histórico da Greta, é possível esperar uma boa adaptação dos livros em questão de ser um filme que garanta o entretenimento, mas com a inclusão de perspectivas próprias no que diz respeito a personagens femininas. O que deve acender um alerta amarelo em relação ao que ela pode escolher incluir ou excluir nas obras clássicas de C. S. Lewis. 

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