Tolkien, Lewis e o amor pelos ‘seres que crescem’

C. S. Lewis e J. R. R. Tolkien, dois gigantes da literatura fantástica, compartilhavam não apenas uma profunda amizade, mas também um amor inegável pela natureza. Este apreço se reflete profundamente em suas obras, onde florestas, montanhas e rios não são meros cenários, mas personagens vitais em suas narrativas e chamarizes temáticos para questões que eles vivenciaram e acreditavam em relação a este assunto. Uma análise ecológica, social e teológica de seus trabalhos revela uma visão profunda sobre a relação entre humanidade e natureza que continua relevante até hoje.

O contexto histórico

J.R.R. Tolkien (1892-1973)

Nascido em 3 de janeiro de 1892, Tolkien viveu durante o auge da Revolução Industrial, que trouxe desenvolvimentos significativos nas áreas de química, petróleo, aço e eletricidade. Sua experiência em Birmingham, um grande centro industrial, proporcionou-lhe uma visão próxima dos impactos da industrialização no ambiente natural.

Tolkien desenvolveu uma forte consciência ambiental, chegando ao ponto de rejeitar o uso de automóveis devido à poluição por um tempo. Ele viveu perto das consequências do industrialismo e geralmente não gostava do que via. Sua paixão não era no progresso contínuo, mas estava em outro tipo de ‘coisas que crescem’. Como ele mesmo declarou: “Eu sou de fato um Hobbit (em tudo menos em tamanho). Eu gosto de jardins, árvores e terras agrícolas não-mecanizadas”.

C.S. Lewis (1898-1963)

Lewis nasceu em Belfast, Irlanda do Norte, também em um período de rápida industrialização do Reino Unido. Sua infância foi marcada pelo contraste entre a natureza exuberante do campo irlandês e o crescente desenvolvimento urbano. Foi nos campos da Irlanda do Norte que ele experimentou pela primeira vez aquilo que mais tarde ele chamou de ‘alegria’ em sua autobiografia, um senso de maravilhamento com o mundo que não tinha descrição, mas que apontava para a existência de algo superior.

Como professor em Oxford, desenvolveu uma perspectiva crítica sobre o progresso tecnológico desenfreado. Em seus escritos acadêmicos, Lewis expressou preocupação com o que chamava de “cientificismo” – a crença de que a ciência moderna poderia e deveria controlar a natureza completamente sem qualquer limites, e que isso levaria a um progresso inigualável na história da raça humana.

Ele via os seus companheiros otimistas demais com os avanços da tecnologia e da ciência, e identificou nisso uma certa semelhança à postura de ‘conquista da natureza’ que havia nos antigos alquimistas. No fundo, para Lewis, a ciência e a tecnologia deveriam ser medidos pelos seus propósitos e pela ética de quem a estava propondo, ou a consequência disso seria o desenvolvimento uma ciência que não serve ao bem comum, mas só aos poderosos. E talvez chegaria um ponto em que até mesmo os poderoso poderiam perder o controle sobre ela.

Como ele diz em “A Abolição do Homem” (1943): “O que chamamos de poder do Homem sobre a Natureza revela-se como o poder exercido por algumas pessoas sobre outras, tendo a Natureza por seu instrumento”.

A natureza fala através dos livros

Na obra de Tolkien

Em “O Senhor dos Anéis“, a Terra-média é apresentada como um organismo vivo e consciente. E Tolkien chegou até mesmo a imaginar como eram os ecossistemas do seu mundo imaginário. No mundo de Arda, os Ents, especialmente, personificam esta visão da natureza como um ser consciente e que possui vontade própria.

Bem antes mesmo da criação da Terra-média como a conhecemos na trilogia, na Primeira Era, a luz do mundo emanava das Duas Árvores de Valinor, Telperion e Laurelin. Essas árvores, símbolos da beleza e da harmonia divinas, eram a fonte de toda a luz e vida em Valinor, a terra dos Valar (seres angelicais). A destruição dessas árvores por Melkor (o “Senhor do Escuro” original) e Ungoliant (uma criatura aranha gigante aliada de Melkor) marcou um ponto crucial na história da Terra-média, um ato de profanação da criação divina que trouxe a escuridão ao mundo. É neste contexto em que a tensão entre o industrialismo e a preservação da natureza, que vimos anteriormente, se inicia. Mas tudo isso se torna mais evidente posteriormente, com o discípulo de Melkor, Sauron, e com o seu aliado, Saruman.

Barbárvore, um dos Ents mais antigos, expressa eloquentemente a tensão que existe entre as pretensões industrialistas de Saruman e a destruição da floresta de Fangorn: “Eu não fico do lado de ninguém, porque ninguém fica do meu lado, se é que me entendem. Ninguém se importa mais com as florestas como deveriam.”

A crítica à mentalidade industrial é particularmente evidente na observação de Barbárvore sobre Saruman: “Ele tem um cérebro de metal e rodas, e não se preocupa com os seres que crescem, a não ser enquanto o servem” (“As Duas Torres”).

Pintura de William Wyld de 1852 mostrando os efeitos da industrialização.

Os Ents, contudo, não são seres solitários na mitologia de Tolkien. Originalmente, existiam as Entesposas, que se dedicavam à agricultura e ao cultivo de plantas menores. E foram elas que ensinaram aos homens, em suas origens, os segredos da agricultura, um dom divino compartilhado com a humanidade. No entanto, as Entesposas se perderam, separando-se dos Ents, uma tragédia que simboliza a perda da conexão harmoniosa entre a natureza selvagem (representada pelos Ents) e a natureza cultivada (representada pelas Entesposas).

Mas como os povos da Terra-Média viam a natureza? Há diversas posturas. Já vimos que muitas vezes os orcs, mas não somente eles, exploravam a natureza, seja a mando de Sauron, seja a mando de Saruman. E os humanos muitas vezes também são vistos não tendo o apreço pela natureza que é devido. Ainda que muitos, como os descendentes de Númenor, tenham uma árvore como o seu símbolo.

Os elfos, por sua vez, representam uma relação ideal com a natureza. Em Lothlórien, por exemplo, eles vivem em harmonia com as árvores, preservando a beleza e a magia da floresta. Galadriel, a senhora élfica de Lothlórien, possui um poder que permite retardar a passagem do tempo e preservar a beleza natural do local, um exemplo da capacidade (e responsabilidade) dos seres conscientes de proteger a criação.

Em contraste com a grandiosidade dos elfos e a sabedoria dos Ents, os Hobbits representam uma relação mais simples, mas igualmente profunda, com a natureza. Eles são um povo rural, que vive da agricultura e aprecia a beleza das coisas simples. Como descrito no prólogo de “O Senhor dos Anéis”:

“Os Hobbits são um povo discreto mas muito antigo, mais numeroso outrora do que é hoje em dia. Amam a paz e a tranquilidade e uma boa terra lavrada: uma região campestre bem organizada e bem cultivada é o seu refúgio favorito. Hoje, como no passado, não conseguem entender ou gostar de máquinas mais complicadas que um fole de forja, um moinho de água ou um tear manual, embora sejam habilidosos com ferramentas.”

Os Hobbits praticam uma agricultura sustentável, coletando apenas o que precisam e vivendo em harmonia com o ambiente ao seu redor. Eles refletem mais perfeitamente a preferência de Tolkien por um estilo de vida mais simples e conectado à terra.

O amor de Tolkien pela natureza e pelos ‘seres que crescem’ foi um dos motivos pelos quais os hippies passaram a adotar a trilogia como um dos livros de cabeceira do movimento. Entretanto, Tolkien não estava olhando para a natureza da mesma forma que os hippies, ou mesmo que os escritores românticos do século anterior. Sua visão não era da natureza pela natureza, mas era uma visão extremamente cristã, como veremos posteriormente.

Na obra de Lewis

Em “As Crônicas de Nárnia“, Lewis apresenta a natureza como um reflexo direto da vontade divina, a natureza veio da canção de Aslam, que canta para que as montanhas e os rios venham a nascer, como é possível ler de forma impactante e emocionante em “O sobrinho do mago”.

Neste livro, Lewis explora a existência de um multiverso através do bucólico e hipnotizante Bosque entre Mundos, onde os personagens veem inúmeros lagos que levam a mundos diferentes, cada um com características diferentes. É desse multiverso que vem a Feiticeira Branca, que no desejo de controlar o seu mundo falou a ‘palavra execrável’ (muitas vezes compreendida como uma referência às bombas atômicas).

O mundo de Nárnia merece nossa atenção especial, pois é nele que Aslam estabelece uma ordem natural onde animais falam e árvores dançam. Em “O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa”, podemos ver essa conexão profunda e vemos como ela se perde com a chegada dos telmarinos em “Príncipe Caspian”.

Mas, diferente de Nárnia, é na Trilogia Cósmica onde Lewis se dedicou a criar uma resposta aos problemas do ‘cientificismo’ que falamos anteriormente. Nela vemos o personagem Filostrato, que declara: “A natureza é o inimigo. A natureza é o que estamos escapando. A coisa toda é uma sobrevivência monstruosa da era romântica. A natureza é plasticidade e a plasticidade é morte.” Mas, se a natureza é inimiga? Quem a está ameaçando?

Dríades em Nárnia.

A crítica ao Industrialismo

A visão de Tolkien

A transformação de Isengard sob Saruman serve como metáfora para os efeitos da industrialização desenfreada: “Mas nada verde crescia ali nos últimos tempos de Saruman (…) Rodas de ferro giravam sem parar, e martelos batiam. Durante a noite, nuvens de vapor subiam das aberturas” (“As Duas Torres“, p. 156).

Tolkien não era um ludita no sentido de querer ser alguém que quer destruir as máquinas ou alguém que quer abolir todo tipo de progresso. Ele tinha, na verdade, uma abordagem mais gradual, preocupada com os impactos e a velocidade das mudanças. Como explica em suas cartas: “Não sou contra as máquinas como tais. Mas me oponho à pretensão de que é algo inevitável, irresistível, algo que devemos aceitar como uma Mudança Necessária” (Carta 186). “Em todas as minhas obras, tomo o partido das árvores contra todos os seus inimigos.” (Carta 339).

O problema dele era com a ideia de que o progresso industrial por si deveria ser aceito sem questionamentos sobre suas formas e suas consequências. Era em relação a elas que Tolkien hesitava. Essa visão fica clara em seu ensaio “Árvore e Folha“, onde ele critica a visão utilitarista e desumanizadora da tecnologia moderna:

“O candeeiro elétrico de rua pode de fato ser ignorado, simplesmente porque é tão insignificante e transitório. Os contos de fadas, em todo caso, têm muito mais coisas permanentes e fundamentais para falar… Não muito tempo atrás – por mais incrível que pareça – ouvi um clérigo de Oxenford declarar que ele ‘saudava’ a proximidade de fábricas de robôs de produção em massa e o rugido do tráfego mecânico auto-obstrutivo, porque isso trazia sua universidade em ‘contato com a vida real, A noção de que os carros a motor são mais ‘vivos’ do que, digamos, centauros ou dragões é curiosa; que eles são mais ‘reais’ do que, digamos, cavalos é pateticamente absurdo. Quão real, quão surpreendentemente viva é uma chaminé de fábrica comparada com um olmo: pobre coisa obsoleta, sonho insubstancial de um escapista! Por minha parte, não consigo me convencer de que o telhado da estação de Bletchley é mais ‘real’ do que as nuvens.”

É relatado que caminhar com Tolkien era, para Lewis, uma experiência por vezes exaustiva, pois Tolkien frequentemente parava para admirar e conversar sobre as árvores que encontravam pelo caminho. Essa anedota ilustra a profunda conexão pessoal de Tolkien com o mundo natural e como ele se sentia ao ver isso sendo destruído, muitas vezes, por uma noção distorcida do que era progresso.

A perspectiva de Lewis

Como falamos anteriormente, em “Aquela Fortaleza Medonha“, o terceiro livro da Trilogia Cósmica, Lewis apresenta o N.I.C.E. (Instituto Nacional de Estudos Coordenados) como símbolo do cientificismo moderno. Através desta organização, ele critica a visão que reduz a natureza a mero recurso para exploração humana. Os trabalhadores desta organização tinham como objetivo uma ciência servisse para nada mais do que o seu projeto de poder, independente das consequências.

Talvez possamos fazer um paralelo claro com a poluição causada por algumas indústrias que alteraram o ecossistema de regiões inteiras ao se instalar perto de rios, ou talvez, para dar um exemplo mais em alta no debate público atual, pelo crescente custo de energia para manter data centers de inteligência artificial.

Lewis utiliza esta organização de alerta sobre os perigos de um grupo tecnocrata que utiliza de meios pretensamente científicos para controlar a opinião pública e estabelecer um estado totalitário.

As preocupações tanto de Lewis, como de Tolkien, é que a falta de dignidade da natureza vai gerar, como consequência, na falta de dignidade do próprio ser humano.

Como Lewis argumenta em “A Abolição do Homem“: “A conquista da Natureza pelo Homem, se os sonhos de alguns planejadores científicos se realizarem, significa o domínio de alguns poucos centenas de homens sobre bilhões e bilhões de homens.”

Símbolos de Esperança

Nem tudo são críticas e nem toda árvore permanece sem folhas. A árvore branca de Gondor, reino de descendentes de Númenor, simboliza a possibilidade de harmonia entre civilização e natureza. O renascimento do reino sob Aragorn representa a esperança de restauração ecológica, e o governo de Aragorn se diferenciou também no trato com o meio ambiente. Como Gandalf observa sobre a tarefa do homem: “Todavia não é nossa função controlar todas as marés do mundo, mas sim fazer o que pudermos para socorrer os tempos em que estamos inseridos, erradicando o mal dos campos que conhecemos, para que aqueles que viverem depois tenham terra limpa para cultivar” (“O Retorno do Rei”, p. 148).

Lewis também não deixou a crítica sem contrapontos. Em “A Última Batalha”, o último livro da saga de Nárnia, ele apresenta uma visão apocalíptica onde o reino narniano se encontra sob a exploração de um falso Aslam que derruba mais e mais árvores. Mas esse governo tirano termina na intervenção do verdadeiro Aslam, que volta para criar uma “Nova Nárnia”, onde a natureza existe em sua forma mais pura e onde ela se torna ‘ainda mais real’. Essa transformação mais profunda que ocorrerá na Nova Nárnia aponta para a verdadeira restauração dos céus e da terra que os cristãos acreditam que ocorrerá com a volta de Cristo no Apocalipse.

Conclusão

Ambos os autores baseavam sua visão ecológica na teologia cristã da mordomia. Para eles, os humanos não são conquistadores da natureza, mas mordomos responsáveis pela sua preservação. Esta perspectiva antecipou importantes debates sobre cristianismo e ecologia que se desenvolveriam ao longo do século XX, em autores como Francis Schaeffer. Tanto em Tolkien quanto em Lewis, a natureza é vista como criação divina, um dom a ser cuidado e preservado, não um recurso a ser explorado indiscriminadamente. A destruição da natureza é, portanto, uma ofensa ao Criador, uma quebra da ordem divina e uma manifestação do mal.

Em uma era de crescente preocupação ambiental, as obras desses autores oferecem não apenas escapismo (não que escapismo seja algo ruim, como nos lembra Tolkien), mas também sabedoria e inspiração. Elas nos convidam a ver a natureza não como um recurso a ser explorado, mas como uma entidade viva com a qual devemos tratar com sabedoria e como filha do mesmo Criador.

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