‘Uma vida oculta’ e a fé de um homem em meio ao nazismo

“Uma Vida Oculta” (A Hidden Life), dirigido por Terrence Malick em 2019, é uma obra cinematográfica profunda que explora temas de fé, integridade moral e resistência pacífica em face da opressão. O filme narra a história real de Franz Jägerstätter, um agricultor austríaco que se recusou a lutar pelo exército nazista durante a Segunda Guerra Mundial, enfrentando as consequências de sua decisão baseada em princípios cristãos.

Sua história se parece um pouco com a de Dietrich Bonhoeffer, pastor da Igreja Confessante que foi preso e morto pelo regime nazista, e que terá um filme retratando sua história sendo lançado esse ano. Ambos estiveram por um breve tempo na mesma prisão em Berlim. 

A história de Franz Jägerstätter

Franz Jägerstätter (August Diehl) é um símbolo de resistência moral e espiritual, mas ele não é um super herói. Durante o filme, vemos ele se questionar e perguntar ao bispo Mikael Nyqvist sobre qual deveria ser a sua ação no meio daquele mundo caindo em pedaços pela ascensão do fascismo e a maior guerra que o mundo tinha visto até então. “O que fazemos quando nossos líderes são maus?”, questiona ele. Ao qual o bispo responde: “Você tem um dever com a pátria”. Mas Franz reluta em acreditar, e no fim confessa em pensamento: “Nós esquecemos da nossa verdadeira Pátria”.

Ele entendeu que, como cristão, sua lealdade a Deus estava acima de qualquer obediência a líderes terrenos, especialmente quando tais líderes exigem atos que são contrários à vontade de Deus. A decisão de Franz de não jurar lealdade a Adolf Hitler e de recusar o serviço militar em um regime que promovia a destruição e o mal exemplifica a tensão que pode existir entre as exigências da autoridade civil e a consciência cristã. Em escala, podemos estar vivendo em um período diferente, mas em essência, o cristão hoje ainda experimenta tentações e dilemas sobre como agir diante da autoridade civil. 

No coração do filme está a ideia de que o verdadeiro heroísmo cristão não está nas grandes façanhas vistas e aplaudidas pelo mundo, mas nas pequenas, invisíveis e frequentemente solitárias escolhas de permanecer fiel a Deus, naquela ‘vida oculta’ que se encontra dentro de nós em nosso relacionamento com o Senhor, mesmo quando isso significa ir contra o mundo inteiro. E essa ‘vida oculta’ consiste em tomar a cruz e imitar a Cristo, como é ilustrado pela música que inicia o filme, “A paixão segundo São Mateus”, do compositor luterano Bach. 

Uma vida oculta e Silêncio

Uma Vida Oculta de Malick é um filme que dialoga com Silêncio de Martin Scorsese, ambos explorando a questão da fé cristã e do martírio. Ambos os filmes retratam cristãos que sofrem perseguição e escolhem a morte em vez de negar sua fé. Quando Malick viu Silêncio, ele aparentemente escreveu uma carta a Scorsese na qual perguntou: “O que Cristo quer de nós?”

Em Silêncio, a perspectiva é que a fé reside no coração, e não nas palavras ou ações. Já em Uma Vida Oculta, Malick apresenta uma visão mais exigente, alinhada com as ideias de Bonhoeffer: o discipulado cristão envolve um chamado à morte, ou seja, à renúncia de si mesmo. Como o pastor escreve em Discipulado: “Quando Cristo chama um homem, ele o convida a vir e morrer”.

Em suas lutas e dores, Franz e sua esposa Fanni (Valerie Pachner) olham frequentemente para as colinas, os grandes picos que colocam suas vidas em perspectiva. Eles sabem que Deus é maior. Há mais neste mundo.

A desobediência civil à luz do Novo Testamento

O Novo Testamento fornece várias passagens que ajudam a iluminar o direito – e, em certos casos, o dever – do cristão à desobediência quando confrontado com uma autoridade que exige a prática do pecado. Como: 

  • Atos 5:29: “Mas Pedro e os apóstolos responderam: ‘Devemos obedecer a Deus antes dos homens.’” Esta passagem é central para entender a posição cristã sobre a autoridade. Os apóstolos, ao serem proibidos de pregar sobre Cristo, desobedeceram as ordens dos líderes religiosos e políticos de sua época porque essas ordens iam contra o mandato de Deus de espalhar o Evangelho. Assim, quando as leis humanas contrariam as leis divinas, a obediência a Deus deve prevalecer.
  • Romanos 13:1-7 e 1 Pedro 2:13-17 falam da importância de se submeter às autoridades, pois são instituídas por Deus. No entanto, essa submissão é condicional, pois não pode violar as leis divinas. A autoridade civil é um servo de Deus para o bem (Romanos 13:4), mas quando ela se desvia de seu propósito divino, perde sua legitimidade diante dos olhos de Deus.

A glória do martírio silencioso

Uma Vida Oculta destaca que a verdadeira glória cristã não reside em atos visíveis de heroísmo, mas em um sacrifício silencioso e invisível. Franz Jägerstätter sabia que sua resistência não traria mudança política imediata e que sua morte poderia passar despercebida pelo mundo. Assim como Hans e Sophie Scholl, jovens que lutaram contra a perseguição aos judeus na Alemanha, e tantos outros mártires da Segunda Guerra, ele também terminou sendo executado por guilhotina.  

No entanto, ele também sabia que a verdade de Deus transcende as consequências terrenas. Sua vida e morte silenciosa são um eco do próprio sacrifício de Cristo, que, ao contrário do que muitos esperavam, triunfou não através do poder terreno, mas através da obediência até a morte – e morte de cruz (Filipenses 2:8).

Durante todo o filme, ele e sua esposa meditam nas Escrituras, olham para os montes, e colocam sua confiança no Senhor. “Chegará o dia em que saberemos para que serve tudo isso. Trabalharemos juntos. Plantaremos pomares, campos. Reconstruiremos a terra,” diz Fanni. Esta criação poderá ser destruída, mas Cristo nos prometeu uma Nova Criação que não terá fim. 

Conclusão

A mensagem de Uma Vida Oculta é profundamente contracultural e teologicamente rica. Ela desafia os cristãos a considerar até que ponto sua fé é disposta a ir em face da injustiça. Como Franz Jägerstätter, somos chamados a lembrar que nosso compromisso com Deus está acima de qualquer lealdade terrena. Quando a autoridade civil exige o pecado, o cristão não só tem o direito de desobedecer, mas o dever de resistir, mesmo que essa resistência leve ao sacrifício final. Este é o verdadeiro testemunho de uma vida oculta em Deus: viver e, se necessário, morrer pela verdade que transcende o mundo.

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